Ainda as cotas
Por iniciativa de uma advogada contrária às cotas, o Partido Democratas (DEM) entrou com uma ação de inconstitucionalidade das mesmas.
Como primeiro passo, o Supremo Tribunal Federal convocou uma audiência pública para os dias 03, 04 e 05 de março.
Podemos entender isso como o início de um julgamento que pode resultar numa grande perda para os afro-brasileiros, ou pode ser a oportunidade para o país reparar sua miopia em relação aos crimes que têm cometido contra a população negra.
É óbvio que as cotas representam uma das mais importantes ações concretas de combate à desigualdade racial vigente no país. Pensadas como parte de um conjunto de políticas de ação afirmativa, as cotas foram concebidas como um instrumento temporário de criação de oportunidades para mulheres, negros, índios, egressos de escolas públicas, portadores de deficiência etc.
Mas embora existam cotas para essas diversas áreas e populações, o que provoca mais polêmica e o que está sendo julgado são as cotas para negros, que desde o seu estabelecimento causaram as discussões mais apaixonadas. As elites e a mídia se posicionaram contra desde o princípio e para isso usaram os mais variados argumentos, respondidos à altura por militantes de movimentos negros e sociais.
Porém grande parte da população afro parece ainda distante dessa discussão, como se ela não lhe dissesse respeito, ou como se as demandas do dia-a-dia fossem infinitamente mais importantes. Não se trata de separar racialmente o país, mas de garantir o respeito à diversidade. Se por um lado a ciência já comprovou que biologicamente raças não existem, elas permanecem como categoria política.
O fato é que após a adoção das cotas, mais negros tiveram acesso ao ensino superior. Cinquenta e dois mil alunos ingressaram por esse método. Como efeito colateral a escola e o ensino voltaram a ser intensamente discutidos e os alunos de escolas públicas ganharam também seu direito a entrar na universidade, antes reduto majoritário dos filhos das elites.
O Movimento Afirme-se elaborou uma campanha. Veja o vídeo:
A seguir há um trecho do livro do professor Carlos Moore, “O Racismo Através da História”, em que abordam-se as ações afirmativas.
“Desde a década de 1960, a problematização do racismo no Brasil fomentada
pelo ativismo do movimento social negro tem crescentemente conscientizado a nação sobre a sua existência. Paralelamente, os estudos sobre as desigualdades sócio-raciais feitos por organizações internacionais, como as Nações Unidas, e por entidades especializadas, tais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), confirmam estatisticamente as denúncias que, desde os anos trinta, foram formuladas pela elite intelectual negra brasileira. Este conjunto de constatações sobre a realidade sócio-racial predominante no Brasil converge no sentido do crescente perigo de cindi-lo em dois “países” radicalmente opostos.
O conceito de nação implica a noção de unidade, mas as disparidades
socioeconômicas e raciais constatadas no Brasil constroem uma nítida e cruel polarização da população. Em decorrência desse quadro desolador, tem-se constatado a necessidade de medidas que possam frear as profundas distorções com conotações especificamente raciais. Desde o final da década de oitenta, o Estado brasileiro adota certas medidas direcionadas para a contenção do declive sócio-racial, como a criminalização do racismo, em 1989; a adoção das políticas públicas de ações afirmativas sócio-raciais, em 2000; e, em 2003, a instituição obrigatória do ensino geral da história da África e dos afro-descendentes, criando um momento de forte impacto nas consciências dos cidadãos, seja no sentido de repulsa ou de adesão entusiasta.
O apoio e os efeitos das medidas do Estado, a partir de 2003, em prol da
incorporação da metade afrodescendente do país, têm possibilitado, pela primeira vez, um debate aberto sobre uma realidade mantida até então sob o manto do silêncio e da denegação. Essas medidas, que anunciam, simbolicamente, o fim da proverbial omissão dos poderes públicos ante o fenomenal descompasso sócio-racial brasileiro, criam,potencialmente, as condições psicológicas para o progressivo empoderamento da metade da população. Pouco a pouco, chega à consciência de todos a realidade de que manter essa enorme parte da nação relegada à marginalização sócio-econômica e cultural de tamanha proporção faz com que haja um grave risco à própria coesão nacional.
A decisão de lançar uma ofensiva geral contra o racismo no Brasil, primeiro
reconhecendo a sua existência, depois impondo medidas concretas para coibi-lo, contêlo e desmantelá-lo abre novos caminhos. Trata-se, efetivamente, de um momento ímpar na história da chamada América “Latina”. Um processo cujo desenlace feliz teria um enorme impacto internacional, considerando a imensidade do problema que constitui o racismo em escala planetária.
Considerando-se os casos antecessores – os Estados Unidos durante a década de sessenta e setenta, Cuba revolucionária a partir de 1959, e a África do Sul, com o desmantelamento do sistema de apartheid, a partir de 1992 – o Brasil se converte apenas no quarto país, desde a Segunda Guerra Mundial, a lançar uma tentativa de reforma de sua ordem sócio-racial. Os progressos alcançados na luta mundial contra o racismo sistêmico são modestos e frágeis.
A terrível regressão que se observa na sociedade norte-americana atualmente, em relação aos avanços dos anos sessenta e setenta, e as dificuldades confrontadas pelo regime Socialista Cubano em lidar com a questão racial são testemunhas do árduo caminho que haverá de se trilhar. Com efeito, durante muito tempo, o regime cubano negou a existência do conflito racial em Cuba (“excrescência do capitalismo e da sociedade burguesa”), pregou o universalismo republicano, condenou as ações afirmativas e deslegitimou a necessidade de um movimento social especificamente voltado para a atenção das questões raciais. Só aplicou, timidamente, medidas de ações afirmativas a partir de 1985.
O Brasil, atualmente, sinaliza aos olhos do mundo possibilidades de
transformações importantes. De natureza inédita neste hemisfério, a Lei 10.639/03, potencialmente transformadora, torna obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira nos estabelecimentos públicos e particulares, incluindo o estudo da historia da África e dos africanos. Se aplicada com o requerido vigor e rigor, essa medida poderia ter um impacto permanente nas consciências das gerações vindouras. A implementação dessa Lei pioneira abriu uma nova porta para a sociedade inteira reavaliar as bases da
fundação do Brasil como entidade histórica nos tempos modernos, e reconsiderasse as relações étnico-raciais nele travadas. Desse modo, poder-se-ia enxergar a nação brasileira através da experiência da população que conforma hoje a metade do país, e não somente, como até então vinha acontecendo, através da experiência da população brasileira de origem européia.
Na medida em que a implantação da escravidão nas Américas conduz à
ocultação e transfiguração da história africana, e também da própria história dos africanos escravizados nas Américas, a democratização da sociedade passa a depender do tipo de elucidação histórica proposta pela Lei Federal 10.639/03. Implicitamente, essa Lei Federal é uma recordação das vias ocultas e ocultadas pelas quais os segmentos sociais dominantes de hoje, em todo o continente americano, constituíram suas riquezas e assentaram sua hegemonia na sociedade.
Relembrar à sociedade o processo verdadeiro através do qual se constituiu
realmente a nação traz também o desafio de se criar um terreno favorável para a implementação de medidas públicas tendentes a reduzir o impacto histórico cumulativo que teve a escravidão sobre aqueles brasileiros, hoje a metade da população, que se encontram majoritariamente confinados nas posições sociais de maior precariedade. No entanto, a experiência mundial é testemunha de um fato: empreender ações marcadamente redistributivas em favor de um segmento historicamente lesado contraria àqueles que se beneficiam, de um modo ou de outro, do status quo imperante. Ainda que essas propostas fossem modestas, como é o caso no Brasil, onde se trata de quotas universitárias de baixa intensidade, a reação adversa é inevitável.
Toda tentativa de elucidação histórica que contrarie o status quo produz
profundo receio naqueles segmentos da sociedade que, por motivos diversos, temem as conseqüências das iniciativas reparatórias. Sem contravir a lei frontalmente, como fazer para deturpá-la no sentido prático, onde realmente impacta e afeta a consciência nacional? Isso tem sido realizado mediante a legitimação teórica – espaço privilegiado do investimento intelectual acadêmico – de todo ou de parte do processo que culminara na escravização de dezenas de milhões de africanos em terras americanas.”