A virulência com que os meios de comunicação e internautas em geral têm atacado as ações afirmativas para negros e mestiços mostra-se desproporcional à realidade das leis que têm sido implantadas. As tão atacadas cotas nas universidades federais, por exemplo, vão privilegiar primeiramente os egressos de escolas públicas, independentemente da etnia, com cerca de 50% das vagas, depois os alunos de escolas públicas, mas com baixa renda, com cerca de 25%; só então os negros, pardos e indígenas (classificação em que teoricamente pode caber 70% da população brasileira), grupo que vai ter direito a cerca de 12% das vagas.
Por um lado, é ótimo ver que as mobilizações do movimento negro vão trazer benefícios para a população como um todo (como, aliás, sempre ocorreu); por outro surge a preocupação de que a exclusão da população afro pode continuar, haja vista que o racismo nas escolas é um dos fatores de afastamento e/ou mau desempenho dos alunos afrodescendentes e 10% das vagas é um índice pequeno para o tamanho da dívida que o país tem.
Mas no horizonte a luz que surge é interessante, com a ideia das cotas migrando para outras áreas, como os serviços públicos. Resta ver o que vai acontecer.
O texto abaixo foi publicado no volume especial Cadernos Negros Três Décadas e fala sobre a criação e a batalha para a manutenção da série. Quando você clicar, a publicação abrirá no site Issuu.
FRENTE NEGRA BRASILEIRA:
GESTANDO UM PROJETO POLÍTICO PARA O BRASIL
Por Márcio Barbosa
Nem sempre o protagonismo afro-brasileiro é lembrado de forma positiva ao longo da história. A nós os relatos oficiais geralmente reservam o papel de coadjuvantes nos grandes eventos, especialmente naqueles que ajudam a definir a situação sociopolítica do país. Quando não nos dão esse papel, tentam desqualificar nossa luta rotulando-a de diversas maneiras negativas.
No entanto, uma consulta a livros e teses que vêm sendo produzidos ao longo dos anos dentro da própria comunidade e por estudiosos, afrodescendentes ou não, revela que o protagonismo do povo negro ao longo da história foi e é muito intenso.
O pós-abolição, por exemplo, é rico em termos de criação de associações afro-brasileiras, na sua maior parte com atividade de lazer e de cultura. Outras entidades tinham caráter assistencialista. Algumas se dedicaram à publicação de jornais numa época em que os índices de analfabetismo eram terríveis.
Em São Paulo uma das entidades mais conhecidas foi o Centro Cívico Palmares, fundado em 1926. Essa associação ultrapassou os limites das entidades recreativas ao pautar o tema da participação política.
Em 1931 surgiu a Frente Negra Brasileira, aprofundando os temas que o Palmares esboçara e atingindo um nível de organização e atuação que a faria ser lembrada através das décadas. Fundada no dia 16 de setembro no salão das Classes Laboriosas, constituiu sede posteriormente na Casa de Portugal, na avenida Liberdade. Nesse local, a Frente Negra manteve escola, departamento de assistência social e jurídica, grupo de teatro, jornal, além de promover palestras e os grandes bailes organizados pelo grupo das Rosas Negras, dentre outras atividades.
É importante notar o contexto em que a Frente Negra surge. Em depoimento para o livro “Frente Negra Brasileira”, Aristides Barbosa afirma que, ao chegar em São Paulo vindo da cidade de Mococa, encontrou no bairro da Bela Vista os homens negros desempregados nas ruas. As mulheres é que, trabalhando como domésticas, arcavam com o sustento das famílias.
Na época grassavam as absurdas teses do racismo científico, para o qual negros e mulatos formavam uma raça degenerada e por isso estavam fadados ao desaparecimento. Entre os adeptos dessa concepção de raça estavam Nina Rodrigues e Monteiro Lobato. Essas teses transformaram-se em políticas públicas, com o incentivo à imigração europeia dando corpo ao desejo de embranquecimento, pois para os ideólogos do Brasil do início do século o país só atingiria o status de “civilizado” quando a “raça degenerada” desaparecesse do seio de sua população. Os anúncios de jornais da época estampam anúncios que procuram por empregados brancos.
Nesse sentido a Frente Negra estabeleceu um projeto político de inclusão do povo negro na sociedade brasileira. Nos estatutos da Frente afirma-se que a entidade “visa à elevação moral, intelectual, artística, técnica, profissional e física; proteção e defesa social, jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra”. Esse objetivo amplo foi perseguido com tenacidade, podendo-se destacar nesse passo algumas diretrizes centrais de ação:
- a construção da ideia de comunidade, independentemente de cor de pele, com uma história comum, um passado comum, com heróis como Zumbi e Henrique Dias; elabora-se aqui uma identidade negra;
- a educação como um fator de superação da situação atual (a educação pode ser formal, como na escola frentenegrina, mas pode ser mais geral, humanista, como nas palestras, no teatro, nas leituras de poesia, no incentivo à leitura de livros);
- atuação político-partidária para alcançar objetivos mais amplos.
Deve-se notar que essa ação é pensada em termos nacionalistas. Para os frentenegrinos, o negro, por sua contribuição à construção do país, deve levar sua luta em termos nacionais, tem direito à terra, tem direito a participar da vida política e da tomada de decisões e especialmente deve pensar na disputa de poder. Embora houvesse informação dos movimentos internacionalistas, como o da volta à África, de Marcus Garvey, a Frente concebe sua atuação somente em termos de Brasil.
A unidade pretendida pela Frente Negra teve resultados concretos. Alguns autores afirmam que ela chegou a ter duzentos mil filiados em todo o Brasil, com ramificações em vários Estados. No Recife, o poeta Solano Trindade chegou a criar a Frente Negra Pernambucana. A carteirinha da Frente valia como um documento de identidade. Em 1936 a Frente foi registrada como partido político. O primeiro partido político negro brasileiro.
Dirigida por afro-brasileiros que tinham superado a barreira do analfabetismo e se tornado professores, a Frente teve de lidar com diversas contradições. Seu primeiro Presidente, Arlindo Veiga dos Santos, era patrianovista, isto é, monarquista, e, embora sempre afirmasse que essa sua posição não interferia em seu papel como frentenegrino, as maiores críticas à Frente e muitas das cisões que surgem derivam dessa postura e da linha autoritária que a diretoria teria imprimido à Frente, com a formação, por exemplo, de uma milícia. Logo no seu início, o grupo do jornal Clarim da Alvorada, de José Correia Leite, rompeu com a Frente Negra. Na Revolução de 1932, ela decidiu por se manter neutra, não aderindo à luta empreendida pelos paulistas. No entanto, houve uma cisão e de dentro da Frente saiu um grupo que formou a Legião Negra para lutar ao lado dos paulistas.
Em 1937 um decreto de Getúlio Vargas que colocava na ilegalidade todos os partidos políticos atingiu também a Frente Negra, provocando seu fechamento. Ela ainda tentou se rearticular como União Negra e depois como Clube Recreativo Palmares e, em décadas posteriores, houve tentativas de se reconstruir a Frente Negra empreendidas por Francisco Lucrécio (ex-primeiro secretário), e outros, mas a época de ouro havia terminado.
Porém, a Frente permanece atual, talvez porque tenha tido o mérito de elaborar um projeto político para o negro e para o Brasil. Nesse projeto político de inclusão, a raça seria um fator de mobilização e coesão, e não de segregação, como vista e sentida no dia a dia. Agindo no sentido de privilegiar a educação, a ação cultural e a participação política baseada no que poderíamos chamar hoje de voto étnico, suprapartidário, a Frente supriu carências imediatas de parte da população negra. Ainda surgirão muitos estudos sobre a Frente, muitos deles tentando desqualificá-la, mas os temas que pautou permanecem atuais.
Abaixo, crianças na escola frentenegrina:
E o grupo das Rosas Negras: